Vasculho os álbuns da minha família. De lá, e dentre tantas lembranças e pessoas que se acendem, minha avó Anália se fez reluzir mais intensamente. Mulher, negra e nordestina, nasceu em 1906 no município de João Amaro, Chapada Diamantina – Bahia, Brasil. Era filha de Augusta e Leonardo, cuja fisionomia desconheço, e irmã de Leonarda, Marieta e Celina, minhas tias-avós, com as quais tive uma relação de convívio e afeto.
Minha vó se casou com um homem branco, vindo da Europa para tentar a vida no Brasil. Ele se chamava Guilherme e vinha de um país cujos fonemas eram-lhe estranhos, Tchecoslováquia. Anália seguiu fielmente os protocolos de sua época e dedicou sua vida, seu corpo e seus pensamentos ao marido. Tempo, atenção, cuidado. Anália era Amélia, o estereótipo da mulher submissa, resignada. Deu à luz a nove filhos, seis viveram, dois homens e quatro mulheres, aos quais sequer se dedicou – não sobrou tempo e tampouco afeto. As crianças ficaram aos cuidados de Celina, sua irmã caçula. A maternidade, me parece, foi apenas mais um dos papéis que ela precisou desempenhar socialmente, por imposição. A ela, mulher casada, recaía o dever de procriar. Já à Celina, sua irmã, mulher solteira e mãe substituta, o de cuidar dos sobrinhos.
Os anos se passaram e com eles a vida tomou rumo em direção a outros lugares. A família cresceu, os filhos se casaram, os netos chegaram. Hoje, olho para essa história pelas fotografias e tento descobrir o que (não) sei sobre ela. Resgato as duas únicas lembranças que tenho dela: as comidas deliciosas que fazia – talvez sua forma de demonstrar afeto pelos seus –, e sua agilidade com o crochê. Tateio as imagens como se buscasse pelo seu corpo. Queria tocá-la. Queria muito perguntar a ela sobre sua vida, se os caminhos percorridos foram escolhas, se a vida foi feita dos retalhos ou dos tecidos inteiros dos seus desejos. Busco por ela para dizer que quero saber mais; quero conhecê la melhor para além da imagem a mim entregue pelos demais familiares e daquela impaciência e zango com a energia das crianças ao seu redor. Apesar disso, desejo fabricar seu colo, desejo construir o afeto que faltou. Pensava nessas coisas e tirava fotos de cima de documentos em cima de bilhetes grudados a outras fotos e a outros documentos e a muitas cartas.
Buscando por ela, encontrei a nós. Eu era ainda bebê e estava em seus braços. Olho para a imagem muitas e muitas vezes e tento entender o que ela me diz. Esse colo era um espaço de afeto ou apenas um lugar de pose para a foto? Eu, ali, tão pequena para compreender as sensações. E hoje, aqui, me sentindo atravessada por essa dúvida. Minha vó sorri, eu pareço dormir, será isso um indício de que ali havia aconchego? Quero ter a certeza de que os sentimentos eram genuínos. Começo a escrutinar memórias do nosso convívio em vão. Não as encontro. Não havia mais colo, exceto
aqueles braços que me seguraram ao redor daquele corpo. Duas mulheres cujos afetos o tempo esfumaçou ou impediu. Essa ausência me impele ao encontro de um afeto cujas bordas desconheço, ou por inexistência ou por uma minha incapacidade memorial daqueles primeiros meses de vida. Manipulo as imagens tentando materializar esse afeto. Recomponho, desconstruo, recrio a vida pela força da dúvida dessa lembrança que não quero esquecer.