No âmbito de diversas culturas, a capacidade de transmutar a morte é identificada com a reprodução e em rituais de fertilidade, e é contada em mitologias que chegaram até nós, como a história da deusa Hel. Na mitologia nórdica, Hel é a deusa da vida e da morte. Ensina aos mortos como viver da frente para trás. Eles vão se tornando mais jovens, mais jovens, até que estão prontos para renascer e retornar à vida. A recuperação do divino tem lugar nas trevas de Hel.
Entre 2003 e 2006 usei filmes vencidos, uma velha Rolleiflex, a luz disponível na minha sala e convidei pela primeira vez oficialmente Francesca Woodman, Clarice Lispector e Marguerite Duras a sentarem-se em meu sofá, as três juntas, como minhas interlocutoras (o mundo contemporâneo as chamaria de coachs?). O território da fotografia como linguagem-suporte reforçava a proposta da série, se levarmos em consideração esta noção “primeira” de tempo congelado, morte do fluxo que o fotográfico carregava na época. Fenda instaurava o desejo de transformar este suporte em pulsação de vida. Um desejo que devotava para mim mesma, tendo meu corpo como campo de experimentações.
Auto-censurado e banido ao meu gaveteiro de aço, esses negativos ali ficaram por muitos anos. A fenda continuou reverberando nos meus cadernos e nos processos terapêuticos e espirituais pelos quais passei em todos estes anos, incluindo uma experiência de quase-morte ao parir minha única filha, Diana e ter meu corpo todo furado e cortado. Em 2019, quase quinze anos depois de interromper a feitura de Fenda, fui desafiada a apresentar este trabalho na íntegra pela primeira vez, numa exposição.
Se abraçarmos a máxima de que a fotografia é a escrita com a luz, talvez Fenda tenha sido a melhor forma que encontrei para me escrever e inventar um íntimo partilhado em imagens preto-e-branco, meu texto-imagem como órgão vital da vida, minha-nossa dor como espaço de ativação, a escrita de si e a dor como atos políticos enfim.